Paulo Rosa
Amizade em Antônio Vieira, padre
O jesuíta português Antônio Vieira (1608-1697), criado desde menino no Brasil, ficou famoso pelos prolíficos e incisivos Sermões. Estes, que não poupavam a ninguém, nem mesmo à realeza, foram publicados em Lisboa, a partir de 1679, organizados em nada menos que quinze volumes. É tal o acervo de assuntos que o próprio Vieira se ocupou de deixar-nos, para cada um dos livros, um Índice das Cousas Mais Notáveis, organizado no Brasil por Alcir Pécora, 2010, pela Hedra. Com entradas em ordem alfabética, qual dicionário, este volume complementar permite uma visão-síntese de toda a produção, dando-nos uma perspectiva do religioso, não só como pregador arguto, mas como intelectual irreverente.
Uma das “cousas notáveis” será o verbete Amizade. Disse o padre em 1670: “os amigos herdados são os melhores. Os amigos que já o foram dos pais são seguros: os que os filhos elegem de novo, quando menos, são duvidosos. O mais que pode esperar um amigo de outro na morte é meia folha de papel com quatorze versos, quando fora melhor uma Bula de defuntos... depois que a sincera amizade se desce de sua dignidade, não há verdadeiros amigos… que amizade são as dos ruins amigos muito maiores inimigos que o (maior) inimigo… O amigo, diz o provérbio, este alter ego: enquanto é ego, ele e eu somos um, e enquanto é alter, eu e ele somos dois...um dos grandes encantos do mundo é não se testar dos amigos. O maior amigo permanece até a morte, depois da morte, ninguém é amigo’.”
O verbete Amor complementa e esclarece aspectos da amizade vieiriana. “Amor em todos os parentescos é acidente que se pode mudar, porém no amigo fiel é essência, e por isso imutável...só se sabe querer bem quem se sabe livrar de si mesmo...o primário efeito do amor é unir...o amor fino é aquele que não busca causa nem fruto…”
Queria destacar duas percepções do padre. Uma, a perspicácia de apontar que amizade mediante, somos ao mesmo tempo uno, tal a proximidade com o amigo, e duplo, pois o amigo é nosso outro eu, tal o vínculo. Essa unicidade-duplicidade simultânea, vale sublinhar, é condição apenas humana, mas que mais evoca ou mais se aproxima da perspectiva divina, i.e., a que aponta a um Deus uno e trino. É ponto de possível interesse para estudiosos.
Outra argúcia de Vieira é a que, repita-se, “só se sabe querer bem quem se sabe livrar de si mesmo”. Saber livrar-se de si, os raros momentos em que nossas restrições internas aliviariam a carga constrangedora, de modo que, então mais livremente, poderíamos amar a nossos amigos, como a nós próprios, sem tantos temores.
Duvido que Freud tenha sido leitor de Vieira, se o fosse, coincidiria com o jesuíta sobre nossas dificuldades para o amor. A Psicanálise freudiana é árduo caminho em busca de diminuir travas para amar. Mostrou Freud, cuja morte ocorreu em um 23 de setembro, em 1939. Lá se vão mais de 80 anos.
Vieira e Freud fazem falta.
Carregando matéria
Conteúdo exclusivo!
Somente assinantes podem visualizar este conteúdo
clique aqui para verificar os planos disponíveis
Já sou assinante
Deixe seu comentário